31 de maio, 2013


 
Intitulado Não tenhais medo. Confiança – Esperança – Estilo crente, o simpósio teológico-pastoral promovido pelo Santuário de Fátima para este ano pestá marcado para os próximos dias 21 a 23 de junho, no Centro Pastoral de Paulo VI. Divulgamos agora uma entrevista à presidente da Comissão Organizadora deste simpósio, Isabel Varanda, docente e investigadora da Universidade Católica Portuguesa. 
 
Entrevista por: LeopolDina Reis Simões 
 
A exortação “Não tenhais medo” que serve de título a este simpósio ecoa com uma atualidade gritante, parece quase que uma provocação. Foi este o propósito?
 
Pareceu bem à Comissão Organizadora deste Simpósio Teológico-Pastoral que este se inscrevesse no tema central que dinamiza a espiritualidade e a pastoral do Santuário no ano de 2013. Esta opção sintoniza, aliás, com a opção temática para os simpósios que tiveram lugar nos dois primeiros anos do septenário de preparação e celebração do Centenário das Aparições: 2010-2011 – Adorar Deus em Espírito e verdade; 2011-2012 – Quereis oferecer-vos a Deus? Horizontes contemporâneos da entrega de si; e 2012-2013 – Não tenhais medo. Confiança – Esperança – Estilo crente. 
Como tem sido recordado em múltiplas circunstâncias e através de diversos meios, a expressão “não tenhais medo” evoca, no contexto de Fátima, as palavras de Nossa Senhora à pastorinha Lúcia, associadas, ainda, à promessa de que a Senhora a protegeria, a ela e aos primos, Francisco e Jacinta, os guardaria no seu coração imaculado e com ela e por ela chegariam a Deus: “O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá a Deus”.
Por um lado, temos, então, nesta opção temática para o simpósio, a decisão de sintonizar com toda a dinâmica eclesial desenvolvida pelo Santuário de Fátima; desta opção temática decorre, por outro lado, uma pertinência política, cultural e religiosa que não fica mais fácil de se fundamentar pelo facto de à primeira vista parecer tão óbvia, quer no contexto europeu quer, e mais especificamente, no contexto do nosso país.
Quando na sua pergunta fala de “atualidade gritante” e “quase provocação”, tem certamente subjacente a complexa e dramática condição geral das nossas vidas e dos nossos contemporâneos a braços com uma crise, a vários títulos inédita, diante da qual nos vamos sentindo desprovidos de recursos, desmotivados e desorientados. Quem poderá ter a audácia de fazer uma tal exortação, hoje: Não tenhais medo? A quem ainda estamos dispostos a reconhecer tal autoridade? Se não se trata de uma mera expressão infantil e infantilizadora; se não se trata de uma endoutrinação ideológica anestesiante; se não se trata de uma velada promessa alienante, então, em que se fundamenta a credibilidade de um tal desafio? Estará o cristianismo e a fé cristã à altura de serem lugares e vozes de confiança e de esperança? 
A comissão organizadora do Simpósio Teológico Pastoral 2013 elegeu a confiança, a esperança e o estilo crente como determinantes de uma humanidade capaz de domesticar os instintos de sobrevivência exacerbados e de se fazer à vida com alegria de viver e responsabilidade aberta ao futuro. Os trabalhos do Simpósio visam escrutinar um léxico e uma semântica de pendor crente e pretendem apurar em que medida e de que modo um estilo cristão de habitar o mundo é relevante na espessura cultural do desapego e da indiferença religiosa contemporâneas.  
 
Num dos momentos do simpósio será abordada a experiência humana do medo. O medo é a antítese da confiança ou, pelo contrário, o caminho/um dos caminhos que pode gerar a confiança e a serenidade?
 
Temos o privilégio de ter connosco um teólogo italiano, Giovanni Cesare Pagazzi e uma teóloga espanhola, Marta Garcia Fernandez, que vão refletir sobre o medo e a experiência humana do medo. A professora Marta vai procurar destacar as figuras do medo na Sagrada Escritura, enquanto que o professor Giovannni vai inscrever a sua reflexão numa antropologia prática do medo. Quer estas quer todas as outras abordagens possíveis, demonstram, no seu próprio enunciado, que não se trata de uma reflexão abstrata, dessintonizada da experiência humana. Aliás, haverá algum ser humano que possa dizer que nunca teve, na sua vida, a experiência desse sentimento instintivo, visceral, quase impossível de traduzir em palavras e que se ressente como ameaça, situação limite e agonia paralisante? O tema diz respeito a todos e todos saberemos do que se está a falar; o desafio estará talvez no trabalho exigente de reconhecimento dos medos, do que faz medo, dos seus nomes, do modo de os domesticar e vencer. E este trabalho solicita a todos. Quanto mais avançamos no conhecimento do universo e na complexa dialética de vida e de morte que move a criação, mais agudamente experimentamos a fragilidade e a contingência e nos espantamos de estar vivos, mais ainda, por a fragilidade poder ser uma força de vida capaz de se impor às forças cegas da evolução.
Situo-me na primeira perspetiva que aponta: medo como antítese da confiança. Tenho dificuldade em perceber como é que o medo pode ser caminho para a confiança e para serenidade. Ao contrário, o medo, em meu entender, anda de mãos dadas com a desconfiança e a desconfiança destrói a relação, porque o outro, que deveria ser desejado como uma graça, é pressentido como uma ameaça, como um rival, como um inimigo, um potencial perigo para a minha integridade; o medo leva à crispação sobre si e daqui à solidão. Fica-se doente de medo. Este tem muitas caras e muitas moradas, todas elas agónicas e no limiar da morte. Se isto é certo, então o medo não é um valor humano; a confiança, ao contrário, é-o, na medida em que se exprime e se define pela integração de aspectos díspares e contraditórios numa síntese com sentido e aberta ao futuro.
A análise mais lata das estruturas do medo e dos seus múltiplos perfis e concretizações antropológicas não nos dispensa de estreitar o âmbito hermenêutico da expressão – não tenhais medo – numa perspectiva teologal: não tenhais medo de referir a vida a Deus ou, de modo ainda mais radical, não tenhais medo de Deus. Como em qualquer outra circunstância, também aqui, esta exortação carece de fundamento e de razões, sem o qual e sem as quais não passará do registo desprezível de mero endoutrinamento ideológico. Mas avançar até á “raiz das coisas” não é caminho simples. O simpósio pretende ser um contributo neste processo de fundamentação de uma confiança e de uma esperança possível.


Como ultrapassar a falta de confiança no outro, no próprio ser humano, e no Outro que é Deus?
 
Talvez seja abusivo da minha parte traduzir a expressão “falta de confiança” por desconfiança. Permita-me, no entanto, que dê as duas expressões por equivalentes. 
Creio que a sua pergunta inquire do enigma maior da vida: o seu lado sombra, tenebroso, dramático e absurdo. Desde o mais fundo da história, chega até nós o eco da odisseia da humanidade, levantando-se, corajosa, contra o que quer que seja “o inimigo” da vida, que ameaça, que faz medo, mas que também desperta a coragem, e incentiva à não resignação. Um fio de confiança e de esperança permitiu que o planeta terra chegasse à sua realidade atual e que a humanidade ganhasse as batalhas milenares contra o infortúnio, contra a ignorância, contra o mal, contra a morte. À custa de muita dor e muito sofrimento. Sim, certamente. Tantas vezes a esperança por um fio mas, mesmo assim, um fio de esperança; um fio de vida, testemunhando que a vida não é para a morte e que o ser humano é o guardião e cuidador da vida, abrindo a concretizações sempre novas e a novas plenitudes.
Chegam até nós narrativas de origem, fruto da sabedoria dos humanos que nos precederam e que, através delas, exprimem o modo como interpretam e lidam com a vida nas suas luzes e sombras, claridades e enigmas. Narrativas deles e de nós, na medida em que nos reconhecemos, por exemplo, no confuso modo de Adão e Eva se relacionarem com a realidade: consigo mesmos, entre si, com o mundo natural e com Deus; narrativas deles e de nós, na medida em que nos reconhecemos na trágica fraternidade de Caim e Abel; narrativas deles e de nós na medida em que nos reconhecemos na multidão que conduziu Jesus de Nazaré ao calvário e permitiu e permite incontáveis calvários – milénios de histórias crucificadas. 
Fechamo-nos ao outro, porque temos medo: que o outro nos domine, que ele nos ofusque, que ele afete de modo negativo a nossa identidade e os nosso estilo de vida. Fechamo-nos ao outro porque não confiamos: não o reconhecemos à altura de uma relação fiducial, de um compromisso existencial para além do institucional e do juridicamente enquadrado. Desconfiamos e a desconfiança sistemática pode levar à fragmentação da comunidade, à desvinculação, à fratura da relação e, no limite, à autodestruição do humano. 
Como ultrapassar? Quem me dera saber. Este é o segredo mais bem guardado da vida; e no entanto… diz-se por vezes que o lugar mais seguro para guardar algo considerado precioso é o óbvio, onde ninguém se lembra de procurar. O segredo da vida está, talvez, debaixo dos nossos olhos, na própria vida; ora, esta não temos de a procurar muito; não é “alguma coisa” que esteja longe ou inacessível; não precisamos de fazer longas viagens ou de investir grandes fortunas; o ser humano é, a nosso conhecimento, a mais extraordinária concretização da vida; neste sentido, talvez não seja difícil de sustentar que o segredo da vida, da vida boa, confiante e grávida de esperança, está escondido em nós à espera de ser trazido à luz. 
Quando deixarmos de ter medo, seremos capazes de nos abrir ao outro sem reservas, reconhecendo-o irmão querido, companheiro que me salva da autolâtria narcísica e da solidão cósmica. Quando deixarmos de ser medo – medo para nós mesmos e medo para os outros – estaremos a aproximar-nos, certamente, do sonho do totalmente Outro, do Deus da nossa fé e da nossa esperança; o sonho de que todas as criaturas que habitam o cosmos vivam em plenitude de paz e justiça e assim glorifiquem o seu Criador.
 
Como observa, na atualidade, o relacionamento do mundo com Deus? De entrega e confiança ou como se Deus fosse um peso e ser-se cristão fosse pouco mais que cumprir regras e rituais? 
 
Diria que, de tudo isso um pouco. Mas, antes de mais, deixe-me dizer-lhe o quanto são difíceis as suas perguntas e como ao lê-las fico quase esmagada pela abrangência e complexidade. Talvez o mais sensato fosse evitar a questão ou dizer que a resposta implicaria uma contextualização e argumentação que ultrapassam o âmbito desta entrevista. Decido tentar, não porque me reconheça um saber ou uma clarividência; não porque tenha a veleidade de pensar que o que penso é a verdade e que o que proponho à discussão é a verdade. Não tenho essa arrogância intelectual, graças a Deus. Sinto, no entanto, que o que posso dizer, não sendo a verdade, diz certamente verdade, na medida em que pretende dar conta do meu modo crente de entender, e que só emito na medida em que esteja em condições de apresentar os fundamentos em que ele se alicerça. 
Os diagnósticos estão feitos. A Igreja de Jesus Cristo vive a dificuldade tremenda de ser incarnação performativa do Evangelho no mundo actual. O Evangelho de Jesus Cristo não perdeu nada da sua vitalidade, nada do seu caráter impulsionador da vida, nada da sua proposta de sentido fundamental da vida, nada da sua coerência antropológica, teológica e cósmica. Jesus Cristo é e sempre será Aquele que fala aos corações cansados, frios, desorientados, desiludidos, fragilizados com a vida; fala como o amante à sua amada; seduzindo, deixando-se seduzir, incansável nas manifestações de dedicação e carinho; cego de amor por todas as criaturas que o Pai lhe confiou; por cada uma delas dando a sua própria vida, se necessário for. É este amor que é redentor; é este amor que nos salva; afeta de tal modo aquele ou aquela que se deixa amar que não há ferida que não seja curada, sombra que não se dissipe, morte que a esperança não vença. Não seria o suficiente para alimentar uma atitude fundamental de confiança contra toda a desconfiança? 
A Igreja de Jesus Cristo vê-se a braços com a incapacidade de expressar este “Deus que tem rosto humano”. Pouco a pouco, mas de um modo por muitos considerado irreversível, a cultura contemporânea entrou num processo de “divórcio amigável” da Igreja católica, enquanto esta vive, já desde há décadas, a grande recessão da sua fachada institucional. Há qualquer coisa que está a morrer e há qualquer coisa que nasce. É inegável. Precisamos de coragem para deixar morrer o que é mortal. Assumir a mutação eclesial – que já se desenha – sem medo, com responsabilidade, com confiança, seguros de que o seu imensurável tesouro de fé – património vivo e imaterial da humanidade – continuará séculos fora. O Deus da aliança eterna, selada em toda a plenitude em Jesus Cristo, foi, é e será sempre o Deus que está à porta e chama e se alguém ouvir a sua voz e abrir a porta Ele entrará em sua casa e cearão juntos (cf. Ap 3,20). Esta é a nossa fé; esta é a fé dos cristãos; esta é a fé da Igreja. 
Hoje, provavelmente mais do que em qualquer outro momento da história, a Igreja tem de cuidar do seu fundamento, cuidar de Deus e ser rosto eclesial de Deus no mundo. Mesmo que o mundo já não a convoque a isso; é a sua missão; é a sua vocação.
 
Quais as suas expetativas em relação a esta iniciativa?
 
Este simpósio, como todas as iniciativas do género, tem como objectivo geral participar no trabalho comum – religiões, culturas, universidades, todos os homens e mulheres que a ele se dispõe – para a inteligência da fé.
Acrescem objectivos específicos definidos no quadro da vocação e missão do Santuário de Fátima e que, correndo o risco de ser redutora, poderia sintetizar em dois segmentos: a receção, a hermenêutica e a expressão da mensagem de Fátima no mundo contemporâneo, por um lado; por outro, a cada vez mais nítida definição da identidade de Fátima como lugar de sagrada abertura ao Transcendente, de celebração da fé, e de reconhecimento da peregrinação mariana e do peregrino como expressão sublime da busca incansável de Deus.
Neste horizonte, assim traçado, se inscrevem as minhas expetativas. Mas há uma outra, que exprimo de modo mais subjetivo, e que muito me seduz. A expetativa de que o Simpósio seja performativo; por outras palavras, que realize aquilo que diz: Não tenhais medo. Confiança – Esperança – Estilo crente. Um tempo e um espaço onde repousar dos nossos medos, onde saborear a confiança, onde cantar a esperança no tom da fé.
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