13 de maio, 2020

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E quem disse que eu estou sozinho?

 

O senhor António vinha todos os anos a pé a Fátima. Foi ele quem mo disse, era eu lobito de 10 anos, à entrada de uma tenda montada num mato à beira da estrada, enquanto o meu chefe lhe lavava os pés cansados pelo caminhar. Os seus quase oitenta anos não incomodavam as pernas e ele teimava que era sozinho que queria continuar a fazer aquele trajeto do Porto a Fátima. «Enquanto Deus me der força», dizia. «Mas o senhor já não devia fazer isto sozinho», ralhava alguém, a adivinhar o que até eu, criança de 10 anos, sabia ser razoável. O que eu não sabia é que um coração de quase oitenta anos tem certezas que alimentam a vida e ele respondeu: «E quem disse que eu estou sozinho?».

As rugas do senhor António ficaram-me gravadas num lugar íntimo, por entre certezas e inquietações. O que faz um homem cansado persistir em fazer-se sozinho à estrada era questão que me incomodava. E visitei as rugas do senhor António muitas vezes ao longo da minha vida, com um surpreendente misto de indignação e de admiração. Por um lado, porque se haviam de arrastar aqueles pés fatigados pelo asfalto da estrada perigosa em nome de uma gratidão ou de uma confiança? Por outro lado, quanta gratidão e quanta confiança não hão de correr nas veias de um homem para que os músculos persistam no passo, quando dói o corpo e a alma! E, entre as minhas inquietações medidas a régua e esquadro, a resposta do senhor António a inquietar-me como quem pede para olhar para o essencial: «E quem disse que eu estou sozinho?».

O senhor António passou a ser o meu peregrino. Mesmo quando Fátima era destino distante de uma peregrinação que eu não sabia fazer. Mesmo quando terá certamente deixado de caminhar anualmente em nome de uma gratidão e de uma confiança numa companhia certa. O senhor António passou a ser o peregrino que eu não sabia se queria ser. Cresci a inquietar-me com os passos de um peregrino de 80 anos, a querer dizer-lhe que não era preciso, que ele podia descansar, que Deus não precisava daquele caminho suado e difícil, eu podia garantir-lhe (ser advogado de Deus é uma das minhas maiores tentações!). Mas cresci também a querer dizer-lhe que queria apenas crescer para ser como ele, com um coração grato e confiante que caminha quando as pernas já não obedecem completamente. Se ao menos eu soubesse o que significava aquela resposta: «E quem disse que eu estou sozinho?».

Para mim, as rugas de um homem de 80 anos foram tratado teológico a recordar-me que o essencial é uma relação que não se sabe dizer. Quando queremos explicar a fé numa equação, quando a reduzimos a um jogo matemático, quando a simplificamos num ritual, num gesto, numa liturgia, não nos devemos esquecer que o essencial permanece para lá de tudo isso, numa pergunta-resposta que nem sabemos formular, mas talvez se diga assim: «E quem disse que eu estou sozinho?».

Este ano, os pés cansados não poderão rumar a Fátima. Este ano, o recinto da Cova da Iria, no dia 13 de maio, será em tudo semelhante àquele mesmo dia do ano de 1917, em que apenas 3 crianças intuíram que, como o meu peregrino de 80 anos, não estavam sozinhas. Mesmo se o olhar do recinto vazio nos desola e nos inquieta, se nos frustra ou nos revolta, se nos dói, talvez importe recordar que, por entre as nossas certezas e inquietações, ecoa uma palavra que toca o essencial: «E quem disse que eu estou sozinho?».

 

Laurinda Alves, escritora, tradutora e professora universitária de Comunicação, Liderança, e Ética

(In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1172, 13 de maio 2020) 

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