18 de setembro, 2023

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O museu e a catedral

Por Pedro Valinho Gomes*

 

Tive recentemente a oportunidade de visitar por duas vezes a catedral de Colónia, num curto intervalo de tempo. Da primeira visita, entrei com o olhar do turista, pronto a regalar-me com a amplitude e a beleza daquele magnífico edifício medieval e da arte que o compõe. Demorei-me tanto quanto necessário para degustar detalhadamente o traço gótico da construção, o relicário do século XII que alberga os supostos restos mortais dos Magos, ou o jogo de vitrais medievais e contemporâneos que oferecem um jogo de luz e sombra a convidar à contemplação. Não fora a impaciência dos meus filhos, mais me demoraria, dividido interiormente entre o desejo simples de saborear o momento e a sede de saber algo mais sobre cada peça com a ajuda da informação disponível à distância de um clique no smartphone.

Mas a minha segunda visita à catedral foi diferente. Cheguei já ao final do dia, atrasado para a missa da solenidade da Assunção, desta feita com o coração do crente que vinha encontrar-se com a comunidade. Continuava deslumbrado com o edifício, vestia o mesmo uniforme de turista, calções, t-shirt, sapatilhas e o imprescindível smartphone omnisciente, mas a experiência era desta vez diferente. Foi quando me levantei para o Aleluia, entoado numa polifonia deliciosa, que me dei conta: aquela catedral majestosa parecia ter crescido, tinha ganhado corpo e voz e o perfume de um povo multiforme que transformava o edifício que eu visitara, havia poucos dias, como quem visita um museu, no lugar de uma liturgia (literalmente, do grego, do “trabalho do povo”). O incenso subia as alturas infindas da catedral e com ele subiam os corações daquela pequena multidão, jovens e velhos, com histórias concretas tão díspares e um desejo comum.

Ainda com o eco do maravilhoso ave-maria ensaiado pelo coro, saí nesse dia da catedral de Colónia a pensar – sabe Deus porquê! – nas liturgias quentes e ritmadas de que participei há uns anos no planalto angolano, na missão do Chinguar. Nas aldeias recônditas da missão, onde há missa quando chega o padre, e quando chega o padre é dia de festa, onde todos são coro e companhia de dança, o edifício não tem esplendor arquitetónico. A capela é uma construção igual a todas as outras marcada por uma cruz pintada na parede, mas até começar a celebração é sala de aulas, lugar da assembleia comunitária, e tudo o mais que possa ser necessário. Mas assim que começa a celebração, aquelas quatro paredes sem graça e incapazes de albergar toda a comunidade ganham vida e a capela faz liturgia das vidas concretas e simples de cada um que ali se reúne num desejo comum.

Já me regalei a descansar os olhos na contemplação de um quadro da agonia de Cristo de van Dyck ou da ressurreição de Rubens. Já me comovi também diante de uma cruz verde pintada à trincha numa parede de uma aldeia perdida no planalto angolano. Encontrei arte em ambos, porque me senti representado, enquanto membro de uma comunidade que se reúne para celebrar a fé. A catedral de Colónia recordou-me isto: que o turista pode-se deslumbrar com uma obra de arte e ser por ela desafiado a transcender-se; mas que é, finalmente, a atitude crente, a disposição para se encontrar numa comunidade, que faz transcender o lugar, num “trabalho do povo”, numa liturgia.

 

* Pedro Valinho Gomes é investigador e docente nas áreas da Teologia e da Filosofia.

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