13 de fevereiro, 2020

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Quando Deus me deixa atrapalhar

 

Sempre me impressionou a paciência da minha mãe. Lembro-me de, nas tardes frias de inverno aquecidas em volta da mesa da cozinha onde se preparava um bolo, eu, criança de poucos anos, insistir em ajudar a mexer aquela massa doce que eu desejava comer mesmo antes de a fazermos cozer no fogão a lenha. Eu não sabia nada das técnicas enigmáticas da pastelaria que fazem transformar uma pasta pegajosa de farinha, ovos e açúcar num bolo doce e fofo. Hoje sei que deixar-me participar naquele ritual era arriscar o falhanço do projeto. Mas a minha mãe nunca me fez sentir que aquela empreitada pudesse falhar por eu lhe meter a colher. Pelo contrário, vestia-me um avental e convidava-me a subir a uma cadeira e a dar o meu imprescindível toque de magia à massa, enquanto ela me olhava com um olhar terno e atento.

Gosto de pensar que o afeto de Deus tem algo desta mesa de cozinha à volta da qual o seu olhar terno e atento segue as minhas mãos desajeitadas enquanto tento mexer a massa de um projeto que não é meu e que não domino, que é dele mas do qual ele me quer fazer participar, mesmo se atrapalho mais do que ajudo. E ele sorri, feliz de me ver vestido com um avental que me ultrapassa e de ver a massa colar-me os dedos, despreocupado do sucesso daquela empreitada, como se nada importasse mais do que estarmos ali a aquecer-nos em volta da mesa numa tarde fria de inverno. O seu olhar atento diz-me que acredita em mim, que quer contar comigo, que me prefere a mim a mexer aquela massa xaroposa do que a qualquer profissional mestrado na decoração de bolos. Quando o bolo sair do forno, há de fazer-me acreditar que ele apenas cresceu porque eu soube mexer.

Não foi isso que ele disse às três crianças de Fátima no descampado de Aljustrel? Que, nos seus desígnios de misericórdia, estava atento às preces que elas traziam no coração? Que gostava de contar com elas para um projeto que elas não sabiam nem compreendiam, mas que confiava que a sua ajuda era imprescindível? E elas meteram-se ao trabalho como quem veste um avental demasiado grande, sem medo de sujar as mãos na massa de um projeto que desconhecem, simplesmente porque estar ali em volta da mesa da amizade com Deus, sob o seu olhar terno e atento, era já tudo. Imagino o quanto Deus se há de ter divertido com a pequena Jacinta, atrapalhada por não ter conseguido manter segredo sobre o encontro com a Senhora da azinheira. Imagino que lhe dissesse que não fazia mal, que o bolo cresceria mesmo assim, que nem tudo tem um guião predeterminado a seguir, que a espontaneidade da sua alegria era tudo o que era necessário.

O amor salva de uma forma que não compreendemos. Não é uma técnica, não há manuais que expliquem o que fazer. O amor salva como crescia o bolo no fogão a lenha da minha mãe, apesar da minha falta de arte e de técnica. Salva porque me envolve na atenção de Deus apesar de todos os apesares, como se a salvação não pudesse acontecer sem aquele nada que eu tenho a oferecer à massa. Talvez seja essa a lição que Fátima tem a oferecer ao mundo, fazendo-se metáfora dessa mesa onde nos aquecemos no olhar terno e atento que transforma a nossa inocência impertinente em fermento que leveda o mundo.

 

Pedro Valinho Gomes, Investigador nas áreas da Teologia e da Filosofia

(In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1169, 13 de fevereiro 2020) 

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