A irmã Simona Brambilla foi uma das oradoras do Encontro “Mensagem e Carisma”, promovido pelo Santuário de Fátima entre 13 e 15 de outubro último.
“Moçambique dilatou-me o coração e a mente”
Entrevista a Simona Brambilla, prefeita do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica.
Nomeada pelo Papa Francisco, no início deste ano, para dirigir o Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, a irmã Simona Brambilla, missionária da Consolata, foi uma das oradoras do Encontro “Mensagem e Carisma”, promovido pelo Santuário de Fátima no passado mês de outubro. À margem do evento, falou com a Voz da Fátima e a Rádio Renascença sobre o trabalho que desenvolve no Vaticano e a experiência como missionária, no norte de Moçambique, junto do povo Macua, no final da década de 90. Enfermeira, com doutoramento em Psicologia, foi ainda superiora geral do Instituto das Irmãs Missionárias da Consolata.
Que significado e relevância considera que a mensagem de Fátima pode transportar para o mundo atual?
Eu fiquei bastante tocada pela dimensão da luz e pelo facto de Nossa Senhora, para os Pastorinhos, ter sido mediadora de luz. Eles dizem que Nossa Senhora abriu as mãos durante a primeira aparição e que, através dessas mãos, chegou uma luz clara, boa, que os ajudou a verem-se a si mesmos como num espelho e a experimentarem a exigência de cair em adoração de joelhos. Parece-me que esta é uma parte da mensagem de Fátima que tem muito que dizer sobre aquilo que nós hoje precisamos. Precisamos de luz, de um ambiente seguro, claro, onde possamos ter a coragem de olhar para dentro de nós mesmos, onde não haja ameaça, medo para reconhecer aquilo que somos e experimentar este Deus que nunca nos julga, nunca nos ameaça, mas acompanha.
Outra dimensão é a da conversão que quer dizer transformação interior profunda. O sínodo falou da conversão, desta capacidade de ampliar o coração, deixar-se libertar daquilo que pode ser rigidez, de tudo aquilo que nos limita na nossa visão, no nosso diálogo, nos nossos relacionamentos.
A irmã trabalha no Dicastério para a Vida Consagrada. Como é o seu trabalho? O que o que é que faz exatamente?
Eu sou o prefeita que é aquela pessoa que serve em coordenar, em dirigir a atividade do Dicastério. O Dicastério funciona um pouco como um ministério num estado laico onde existe um grupo de pessoas que se ocupa de alguns assuntos ─ no nosso caso da vida consagrada em todos os cinco continentes ─ e que acompanha e promove o desenvolvimento da vida consagrada. Qual é o meu trabalho? Procurar fazer com que cada um dos colaboradores tenha um ambiente para oferecer o melhor de si, ao serviço da vida consagrada na Igreja. Isso quer dizer promover, acompanhar, animar a vida consagrada nas várias culturas, nos vários continentes e também olhar para a parte das regras, das constituições e da disciplina na vida consagrada. Temos uma grande atividade de escuta. Temos, a cada dia, pessoas que vêm, grupos que vêm para apresentar as próprias situações, os problemas, os sofrimentos, mas também os caminhos, as luzes, os sucessos. Há, portanto, uma atividade de escuta, uma atividade mais de escritório, que tem que ver com a receção de documentação que é preciso estudar, aprofundar, para depois responder de maneira que seja útil às pessoas e aos grupos, que seja uma resposta correta do ponto de vista jurídico e canónico, mas também, e sobretudo, do ponto do ponto de vista pastoral e de acompanhamento. E depois existe aquela dimensão que nós chamamos de Dicastério em saída: as visitas. Temos consagradas e consagrados nos cinco continentes. É importante também para nós chegar lá. Não é só olhar para os papéis, mas também ter contacto com as pessoas onde as pessoas vivem. Por exemplo, ultimamente fomos aos Estados Unidos para ir ao encontro da conferência dos superiores e das superiores maiores dos institutos. Fomos à África do Sul também para encontrar os vários representantes da vida consagrada em África. Fomos à Índia pela mesma razão e a outros lugares. Agora, estou aqui em Fátima, há duas semanas estive em Espanha, na Polónia e noutros lugares que é preciso visitar para ter contacto existencial com as pessoas.
Há escassez de vocações para a vida consagrada em algumas regiões do mundo, enquanto noutras há muitas vocações. Este desequilíbrio é um tema que faz parte do seu trabalho diário?
Sim, principalmente, na escuta das conferências dos superiores e das superioras nos vários lugares. Nas nações do planeta são aqueles órgãos de comunhão que representam a vida consagrada num dado território. Então, com elas e com eles é que vamos refletindo também neste assunto das vocações. Há uma parte do mundo, a parte ocidental, onde as vocações estão a diminuir numericamente, aumentando com a idade, enquanto noutros lugares do planeta é o contrário, há um desenvolvimento e um crescimento até numérico de vocações. O espírito chama onde ele quer e é bom que nós possamos acompanhar esse trabalho do espírito, acompanhando também aqueles institutos que vão completando a própria experiência nesta terra, a viver bem esta fase, porque é uma fase muito preciosa. Quando se conclui uma experiência há um luto que não é fácil, mas este luto pode abrir as pessoas e o grupo a outras experiências de colaboração intercongregacional, interinstitucional muito interessante.
Refere-se às congregações que fecham?
Sim. Há congregações que agora têm cinco ou 10 membros já de idade. Como acompanhar estas irmãs ou irmãos a concluir de maneira digna, de maneira espiritual e humanamente sadia esta experiência, deixando uma herança benéfica? Muitas vezes, há um acompanhamento junto de outros institutos que, por afinidade carismática, se prestam a assumir esses poucos membros que ficaram acompanhando até à morte, até à conclusão desta experiência e dando continuidade na maneira do possível a essa experiência espiritual.

A irmã Simona Brambilla foi nomeada prefeita do Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica pelo Papa Francisco em outubro de 2023, tornando-se a primeira mulher a liderar um dicastério da Cúria Romana.
A irmã trabalhou em Moçambique. Como é que essa experiência no terreno, tão diferente do mundo ocidental, contribuiu para que hoje possa fazer um trabalho mais lúcido?
Para mim, foi e é uma experiência muito preciosa em termos de dilatação do coração, mas também da mente, da compreensão do humano. As categorias ocidentais são diferentes das categorias do mundo africano. Aprender outras categorias mentais, mas também afetivas e espirituais, é uma experiência que enriquece. A mim, enriqueceu-me muito e ajudou-me a quebrar alguns esquemas fixos que eu tinha. Por exemplo, o povo Macua, onde tive a graça de viver, onde fui acolhida com muito afeto, muito respeito, no norte de Moçambique, tem uma experiência cultural, espiritual, humana muito diferente da cultura onde nasci.
Em que sentido?
É um povo matriarcal, matrilocal, matrilinear. Tudo gira em torno da mulher e da mãe. Até a imagem de Deus: Deus é mãe, Deus é mulher. É a mulher a imagem mais parecida de Deus, mais fiel de Deus. É uma sociedade implantada nestas categorias mentais. Isso ajudou-me a poder ver a vida, mas também a experiência cristã de outra maneira, com outra luz e ampliar os horizontes. Depois, a sensibilidade extraordinária deste povo que tem uma capacidade intuitiva excecional. Naquele tempo, não tínhamos internet, não tínhamos telefone. Para fazer um telefonema, devíamos percorrer 150, 200 quilómetros de estrada não alcatroada, simplesmente para ligar para casa. Embora faltasse este tipo de comunicações, tinham outro tipo de comunicação. As pessoas desenvolveram uma capacidade de empatia, por exemplo, de perceber aquilo que você sente, que você pensa, incrível. Eu fiquei até assustada às vezes: “estas pessoas leem o meu coração, leem a minha mente”. É um mundo espiritual humano, onde algumas qualidades são mais desenvolvidas do que na sociedade ocidental, muito cerebral e muito tecnológica.
Mais humana?
Mais humana, sim, mais à medida da pessoa, sem correr tanto, sem ficar atrás deste ser competitivo, desta ânsia, desta angústia de prestação. Ali, levanta-se às três de madrugada e vai-se de a pé, com a enxada aos ombros para trabalhar o campo. Trabalha-se, trabalha-se mesmo, mas é uma maneira mais humana, eu diria, mais natural, mais ecológica de viver.
Nessa altura já tinha formação em Psicologia ou foi mais tarde que adquiriu?
Sim. Foi depois de terminar o curso de Psicologia, que fui para Moçambique. Fiquei só dois anos, infelizmente. E também, ali, foi muito interessante pôr em diálogo a psicologia ocidental que eu tinha aprendido, experimentado, com a psicologia muito profunda tradicional macua. Descobrimos que, por exemplo, o conceito de inconsciente não foi Freud que o inventou, que o descobriu. A tradição macua desde há 5000 anos que trabalha com inconsciente em processos rituais muito profundos, através de símbolos de narrativas que temos de aprender. Eu tive, eu tenho ainda de aprender muito deste tipo de psicologia.
Faz parte dos objetivos da Igreja ter mais formação a esse nível para haver mais acompanhamento e se conhecer melhor as pessoas?
Neste caminho sinodal demo-nos conta de quanto precisamos de construir pontes, onde estas sabedorias até eclesiais possam encontrar-se, dialogar e trocar dons. Isto é muito importante, porque somos todos cristãos, sim, mas, pertencendo a contextos culturais diferentes, declinamos também a nossa fé a partir das nossas categorias. Então, pôr em diálogo estas diferentes perceções é importante e enriquecedor. Na caminhada sinodal da Igreja, colocando em comum estas diferentes perceções, experimentamos que não é fácil, mas também o quanto é frutuoso.

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