02 de dezembro, 2025
Fátima: fonte de paz e humanidade num mundo endurecidoUma jornalista, um historiador e um cirurgião refletiram sobre o papel do Imaculado Coração de Maria num mundo agressivo, frio e sem capacidade de escuta.
Na jornada de abertura do novo ciclo pastoral, no dia 29 de novembro, o tema do novo ciclo pastoral ─ “Coração de Maria, caminho para ver a Deus” ─ juntou, num diálogo improvável, a jornalista Helena Matos, o historiador José Eduardo Franco e o cirurgião cardiotorácico Manuel Antunes. As intervenções começaram por incidir sobre a relação de cada um dos oradores com Fátima e percorreram, depois, outros âmbitos, numa reflexão que cruzou espiritualidade, história e ciência. Da dimensão espiritual e cultural do termo “coração” à necessidade de uma cultura de gentileza na vida pública e pessoal, passando pelo papel das mulheres na transmissão da fé, o painel ofereceu à plateia uma visão ampla do que Fátima pode fazer pelo coração dos homens e pela pacificação das relações. A força das mulheres em FátimaHelena Matos recordou que a sua ligação ao Santuário de Fátima nasceu durante o trabalho de investigação para séries documentais e reconheceu que continua fascinada com o fenómeno de 1917. O que mais a intriga, disse, não é apenas a narrativa das aparições, mas todo o tecido humano que lhes deu corpo. “É impossível não perguntar como chegaram ali tantas pessoas, vindas de todo o país, sem estradas, sem meios, num local que era um descampado”, relembrou. Para a jornalista, a força feminina foi determinante. Recordou as peregrinações dos anos 50, quando mães, avós e filhas percorriam quilómetros para dar graças, pedir proteção ou simplesmente depositar no Coração de Maria tudo o que lhes pesava na alma. “Este é um espaço da Virgem Maria e das marias, é um espaço verdadeiramente mariano com tudo o que Maria quer dizer em Portugal”, sublinhou.
Helena Matos destacou ainda a “personalidade fortíssima” da Irmã Lúcia, “tão forte que se apagou”, permitindo com isso o crescimento de Fátima. A jornalista sublinhou a influência discreta, mas decisiva da vidente através da escrita, nomeadamente pelas cartas que escreveu aos Papas. Também José Eduardo Franco destacou o papel invisível, mas essencial das mulheres na construção do catolicismo e na difusão global da mensagem de Fátima. “Ainda está por fazer a história da Igreja no feminino, porque as mulheres têm um papel fundamental na transmissão da fé”, referiu. Para o historiador, as mulheres representam “uma espécie de soft power na Igreja, um poder quase invisível, mas determinante e decisivo. “Se não fossem as mulheres, a Igreja não seria o que era”, afirmou. Neste contexto, o investigador trouxe também à colação o papel da Imagem Peregrina de Nossa Senhora. Lembrou que esta percorreu o mundo como mensageira silenciosa da cordialidade cristã, levando esperança a nações devastadas pela guerra ou pela pobreza. “O coração em Fátima não é sentimentalismo”, afirmou, “é uma pedagogia espiritual que nos convida à paz, à reparação e à escuta”. Contraponto a uma civilização gélidaJosé Eduardo Franco descreveu Fátima como um “útero espiritual”, um lugar onde se repõe a relação entre o humano e o divino através de um símbolo, o coração, carregado de significados. O investigador recordou que a devoção aos corações de Jesus e de Maria emergiu como resposta “à construção de uma civilização gélida”, na viragem do século XIX ao século XX. “A emergência das espiritualidades quentes, que são bem representadas pelo coração de Jesus e Maria é uma espécie de contraponto a esse projeto”, constituindo igualmente o que o investigador classificou de “um dique contra a emergência de uma nova barbárie”.
Para José Eduardo Franco, Fátima representa “uma espécie de grande manifesto por uma urgência que é sempre recorrente na história da humanidade que é a urgência da paz”. Questionada sobre o clima político atual, Helena Matos afirmou que se vivem tempos saturados de emoção, mas com grave défice de afeto e empatia. “Discursos emotivos não são discursos afetivos”, clarificou, e sobre governantes e líderes religiosos, foi categórica: “Quem lidera, seja na política ou na Igreja, tem de servir e ouvir. O que sobra às pessoas quando não as ouvem é a zanga”. José Eduardo Franco reforçou a ideia de que a política se encontra impregnada de agressividade e de desprezo pelo outro, e considerou que é preciso fomentar junto dos políticos “uma cultura de gentileza”. Lembrou que Fátima tem sido, desde 1917, um espaço onde os corações feridos encontram consolo, sendo, por essa razão, um lugar capaz de inspirar novas formas de relação social. O coração físico e o coração simbólicoO cirurgião cardiotorácico Manuel Antunes, responsável por mais de 35 mil cirurgias de coração aberto, trouxe a perspetiva científica: “Abrimos milhares de corações, mas nunca encontrámos o amor lá dentro”. Explicou, porém, que o órgão se tornou símbolo universal do amor e da afetividade por ser “mais fácil de representar e de associar às emoções”, apesar de ser o cérebro quem governa os afetos.
Manuel Antunes descreveu ainda a ligação biológica entre os corações de Maria e de Jesus, lembrando que “o coração do filho começa a bater 28 dias após a conceção, quando a mãe nem sabe ainda que está grávida”. “Neste sentido, o primeiro coração de Jesus é o de Maria. E o coração de Maria carrega o ritmo de Jesus”, uma imagem que sintetizou o encontro entre teologia e biologia. “A ciência, às vezes, parece estar contra a religião, mas não está”, ressalvou. O cirurgião partilhou ainda episódios curiosos de momentos pós-transplante: “As famílias perguntam sempre se o recetor continuará a amá-las da mesma maneira, mesmo quando o coração doado é de outra idade ou género”. Lembrando que, cientificamente, o coração é uma bomba e que a tecnologia vai permitindo substituí-lo por equipamentos elétricos, o cirurgião garantiu que o amor não desaparece da pessoa Questionado se falta coração aos profissionais de saúde, Manuel Antunes reconheceu que há médicos sem empatia ─ incapazes de um abraço no início da consulta e de um beijo à despedida ─ esquecendo que essa é “uma parte importante da cura”. Sugerindo à plateia a leitura do livro Retalhos da vida de um médico, da autoria de Fernando Namora, Manuel Antunes mostrou-se indignado e caricaturou o facto de existirem médicos que nunca vêm o doente por nunca saírem de trás da máquina. Um ciclo pastoral centrado no coraçãoO encontro terminou com a ideia de que o “coração”, seja enquanto símbolo espiritual, metáfora afetiva ou órgão biológico, permanece como território onde se cruzam fé, humanidade e ciência. Com o novo ciclo pastoral, o Santuário de Fátima propõe-se aprofundar essa reflexão, convidando os peregrinos a olhar para o Imaculado Coração de Maria como caminho de paz, reconciliação e escuta num mundo cada vez mais fragmentado. “Um mundo consagrado ao Imaculado Coração é um mundo com mais beleza e mais paz interior”, referiu Helena Matos, “e esses são precisamente os valores que hoje mais nos faltam”.
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