25 de outubro, 2024

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“Juntos, sermos Igreja de outra maneira”

A teóloga espanhola fala sobre os desafios atuais da Igreja, numa entrevista onde defende a necessidade de reformas estruturais, rumo a uma comunidade mais inclusiva e centrada no Evangelho.

 

Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola e uma das poucas mulheres leigas com direito a voto no Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade, participou no início de setembro nos Encontros na Basílica do Santuário, onde apresentou uma reflexão sobre a dignidade humana e o papel de cada cristão na construção de um mundo mais justo. No final do encontro, conversou com a Voz da Fátima sobre os desafios atuais da Igreja, numa entrevista em que destacou a importância do diálogo ecuménico e inter-religioso e defendeu a necessidade de reformas estruturais que conduzam a Igreja a ser uma comunidade mais inclusiva e centrada no Evangelho.

 

Ao ler a sua biografia, houve algo que me chamou particularmente a atenção: o facto de ter estudado numa universidade protestante.

Bem, eu tentei estudar Teologia na minha cidade, na minha diocese, em Saragoça, que não tinha universidade, mas tinha seminário; e eu poderia ter entrado, se o bispo me tivesse assinado uma licença. Mas ele não quis, por causa da minha condição de mulher. Então, tive de começar a procurar um lugar onde pudesse estudar Teologia. Sabia que existia a faculdade protestante de Madrid, mas cada vez estou mais convencida de que o Espírito se foi abeirando de mim até eu a encontrar.
Enfim, eu queria ser teóloga; e teóloga eu sou. Já então, não representava para mim nenhum problema estudar noutra confissão cristã. E a verdade é que estou muito contente com essa experiência ecuménica, tão viva, tão real, tão quotidiana. Eu creio que, a nível eclesial, é uma das maiores e mais profundas experiências que tive, porque a própria faculdade era também muito ecuménica; havia professores de muitas confissões e a verdade é que foi e é uma experiência maravilhosa. 

 

Essa experiência terá, com certeza, moldado a maneira como passou a ver a Igreja...

Claro. Ter estudado numa faculdade protestante fez de mim a teóloga que sou. Quero dizer, eu provavelmente não seria ou não teria a linha de pensamento que tenho se não tivesse estudado numa faculdade protestante, com tantas confissões. Isso abriu muito o meu panorama mental e também o meu coração. E isso fez-me perceber que a diversidade, a variedade e a diferença são uma riqueza tão grande, que acabo por não compreender porque é que as pessoas têm tanto medo disso.

 

Esse momento exerceu alguma influência na sua atitude?

Foi muito doloroso, porque era a primeira vez que a minha Igreja me rejeitava pelo simples facto de ser mulher. Mas também é verdade que, mais tarde na vida, vamos vendo como há outros tipos de rejeição, mais subtis, para com outras pessoas e, de certa forma, esta experiência acabou por me permitir desenvolver uma empatia para com aqueles que são rejeitados na Igreja. Tudo tem a sua parte boa. Sim, tudo tem a sua parte boa.

 

Chegados a uma década de um pontificado do Papa Francisco, a um Sínodo ao qual a Cristina é chamada a participar de forma particularmente ativa, acha que este pode ser um ponto de mudança?

Sim. Quando olhamos um pouco para a história dos sínodos de Francisco, vemos que ele tentou a participação de todo o povo de Deus, de uma forma ou de outra, e utilizou uma espécie de método científico, de tentativa e erro. De certo modo, o Sínodo da Amazónia foi o ensaio geral para este Sínodo. Este Sínodo precisou de uma estrutura nova, para permitir que todo o povo de Deus participasse. Isto abre expetativas muito grandes: por um lado, vimos que povo de Deus somos todos nós, desde o Papa até à última pessoa que esteja a ser batizada neste momento. A ampla base do povo de Deus, que somos nós, os leigos, aprendeu e provou que tem boas ideias, que sabe exprimi-las e que, escutando-a — porque nunca tínhamos sido escutados na Igreja —, podemos gerar um estilo. Não outra Igreja, mas aprendermos, juntos, a ser Igreja de outra maneira. O problema é que isso exige uma mudança de mentalidade.
Mudar a mentalidade das pessoas, naquela que é ainda uma estrutura muito hierárquica, é muito difícil, porque se trata de passar do poder para a autoridade. E, claro, o poder vence, tem força, não precisa de se explicar, mas a autoridade convence pelo gesto, pelas atitudes, pelo diálogo, pelo acolhimento.

 

Acredita que essas mudanças são possíveis?

São possíveis se todos quisermos que sejam possíveis. Se conseguirmos ser uma Igreja de autoridade e não de poder, o facto de abraçar, o facto de acolher, de ser inclusivos virá por si só, acontecerá sem qualquer tipo de estratégia, preparação. Só que, claro, para isso, há que mudar a mente e o coração.

 

Essa mudança deve vir sobretudo dos leigos?

Dos leigos, dos sacerdotes, dos bispos… de todo o povo de Deus. Temos de mudar a mentalidade, como povo de Deus.
De certo modo, neste momento, depende sobretudo dos leigos, mais do que dos sacerdotes e mesmo do que dos bispos. No documento que agora vamos trabalhar, na assembleia de outubro, põe-se um acento tremendo na transparência, no prestar contas; quero dizer, um bispo tem de prestar contas do que faz, do que fez. A cada ano, deve convocar uma assembleia para explicar o que fez e como exerceu o seu ministério episcopal. 
Aí, o leigo, com esse documento na mão, porque se aprovam, ou se aprovaram na assembleia, tem de ser capaz de se tornar um adulto na fé e entender que se podem fazer perguntas a um bispo. 
É também um exercício nosso, como leigos, crescermos e tornarmo-nos adultos na fé e sabermos que perguntar alguma vez a um bispo “porque sim ou porque não” não é ir contra o bispo, é a forma natural de Igreja sinodal.

 

Fala da uma Igreja “onde cabem todos”, à qual o Papa apelou aqui em Fátima?

Quando ele lançou esse grito, no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude, no dia seguinte, houve bispos do meu país que estavam nas JMJ e que começaram: “sim, bem, a Igreja é de todos, mas não para todos; “sim, mas convertidos”; “sim, mas…”. 
Ora, quando é que Jesus rejeitou alguém entre os seus seguidores? Nunca. A única vez que Jesus se aborrece seriamente, e deixa disso mostras muito claras no Evangelho, é quando expulsa os mercadores do Templo. E os mercadores do Templo, não podemos esquecer, eram um elo da cadeia de abuso de poder. A única coisa que Jesus rejeita é o abuso de um ser humano, seja de que forma for, sobre outro ser humano. De resto… todos são bem recebidos.

 

Propõe um regresso à essência, é isso?

Claro, voltar a essa essência seria o ideal. Mas não é que vá ser fácil. Não devemos ter medo da palavra “reforma”. Não acontece nada de mal por “reformar”. Digo isto porque às vezes, para nós, sobretudo como católicos, a palavra “reforma” cheira ao século XVI, com Lutero. Não se trata disso, entendido? Mas, por si, “reformar” não é mal.

 

É isso que a Igreja tenta agora?

Sim, recuperar a sinodalidade é muito importante, sobretudo numa Igreja que precisa de recuperar a credibilidade; porque não temos credibilidade a partir da crise dos abusos; abusos de todo o tipo, note-se. Não estamos a falar só de abusos sexuais. Precisamente agora, chamou-me muito a atenção que, no documento que trabalharemos em outubro, na assembleia, se aborda já, abertamente, outro abuso, que é o abuso económico.

 

E que caminho é esse?

Na meditação de abertura do Sínodo, eu disse que não devíamos ter medo de pedir perdão pelos erros, nem pelos delitos, porque os abusos, sejam de que tipo for, são delitos. A parte divina da Igreja, digamos assim, não tem problema, mas a parte humana tem muito que limpar e muito que justificar diante da própria sociedade.

 

Essa purificação terá de vir com mudanças efetivas, para garantir que não se repita…

Claro. Há muitas propostas recolhidas, por exemplo, no documento da CEP que, para serem realmente efetivas, de forma institucional, precisam da reforma de algumas estruturas. Mas isso não impede que se faça algo ao nível da comunidade. Para que estas mudanças venham, só falta que uma comunidade de uma paróquia, de uma congregação religiosa, comece a ter atitudes diferentes. 
A longo prazo, é mais eficaz isso do que esperar que mude toda a estrutura (que é necessário e em que devemos continuar a insistir). Mas o que não podemos fazer é… “bom, como não muda nada, não podemos fazer nada”. Não. Essa atitude de derrota, diga-se claramente, não a podemos manter. E é necessário atuar como pequenas comunidades. 

 

A Igreja tem de se reinventar como comunidade?

Jesus deixou-nos muitas pistas do que tinha de ser uma comunidade. E, se repararmos bem, os grandes protagonistas de muitos encontros com Jesus são mulheres; e mulheres que, na época, eram estrangeiras. Quem é a primeira mulher que evangeliza? É a Samaritana. Para Jesus, não tem importância que ela seja samaritana; e ela acha estranho, não? Mas aceita o diálogo. O melhor é que, quando ela volta à aldeia, não se “sacraliza”; ela podia ter dito: “conheci alguém… eu vou contar-vos… eu vos direi… quem quiser que me pergunte, porque sou eu aquela que”. Não, o que diz é: “conheci alguém que me contou tudo. Se o quiserdes conhecer, ide vê-lo”. Quer dizer: ela põe-se de lado. Ela não se torna o centro.
Esta é uma imagem maravilhosa para dessacralizar, porque é necessário dessacralizar a figura do sacerdote. Esta mulher estrangeira, no encontro que tem com Jesus, oferece-nos a possibilidade de um modelo que podemos ajudar a criar para um novo ministério sacerdotal.

 

As mulheres podem assumir um outro papel nessa mudança necessária na Igreja?

Está em cima da mesa a questão do diaconado feminino. Eu não tenho vocação sacerdotal nem vocação ao diaconado, mas conheço mulheres que sim, que a têm e que, aliás, fizeram um discernimento exatamente igual ao que faz um jovem rapaz no processo de admissão ao seminário. E demonstra-se que têm autêntica vocação sacerdotal. 
Por outro lado — o sacerdócio é sempre um dom —, podemos crer que o Espírito Santo vai distribuindo dons em função do género? Porque, então, teríamos de pensar que os dons do Espírito têm género, o que creio ser pouco lógico. 
Em todo o caso, entendendo que há mulheres que têm essa vocação e que, de facto, há muitas mulheres a exercer um diaconado real, sem o papel que faz fé de estarem ordenadas, eu começo a perguntar-me se, precisando a mudança de que necessita o modelo ministerial, neste momento, o melhor é que as mulheres passem por uma ordenação. 

 

Pondera outra realidade?

Se se ordenam como diáconos (ou como diaconisas, como lhes queiramos chamar), isso é manter a estrutura do ministério que já não serve neste momento, porque é do século XVI e estamos no século XXI. Não seria mais interessante que começássemos a pensar numa forma de ministério não ordenado?
A mim, preocupa-me que uma possível ordenação diaconal das mulheres sirva ainda mais para reafirmar um modelo clerical. E o que temos de mudar é o modelo, porque, neste momento, ele não serve nem para a sociedade nem para a própria Igreja.

 

O que propõe, então?

Comecei a pensar nisto na assembleia do ano passado, quando falávamos do diaconado. Não poderíamos, entre todos, começar a pensar num ministério que não passasse precisamente pela ordenação?
Curiosamente, o Concílio de Trento foi um bom concílio pastoralista, porque abordou o problema e reformou os seminários em ordem ao que no seu tempo era necessário. Mas é claro que aquilo que era necessário no século XVI não é aquilo de que precisamos no século XXI. No entanto, temos de aprender com a sua valentia, com a sua valentia em enfrentar a realidade.

 

Uma das questões com as quais a Igreja se confronta é a do ecumenismo. O diálogo entre as religiões é urgente?

Essa é uma questão muito importante. Mas uma coisa é o diálogo ecuménico entre diversas confissões cristãs e outra coisa é o diálogo inter-religioso, note-se. 
A minha experiência do ecumenismo é algo que na vida quotidiana podemos viver sem nenhum tipo de perigo, não sei como dizer… Quero dizer, porque nos custará tanto, por exemplo, criar uma obra social em que possamos estar ambos, protestantes e católicos ou luteranos, evangélicos, anglicanos? Qual é o objetivo? Construir esta obra? Então, quantos mais formos, mais rápido será e menos custoso. Isto não deixará de ser uma forma de ecumenismo, que é somente a nostalgia de uma unidade que temos, mas que não sabemos exprimir de forma prática. 
Depois, temos o diálogo inter-religioso, onde se podem procurar formas de convivência. O bem comum é o bem comum: para muçulmanos, para cristãos, para judeus, para budistas… Temos de encontrar fórmulas em que possamos coincidir e, então, pode-se crescer.

 

Que papel pode ter Fátima nos desafios que o mundo e a Igreja enfrentam?

Esta manhã, ao passear no Recinto de Oração, dei-me conta de pessoas que manifestavam a sua religiosidade ou a sua espiritualidade de maneiras muito diferentes. Mas, a todas, algo as atrai aqui. Curiosamente, os santuários são maioritariamente de Maria. Será que é essa realidade feminina eclesial que atrai e que faz deste um espaço capaz de gerar encontro? Aqui, é também uma figura feminina que convoca, que atrai e que, de certo modo, nos dá sossego.
Num mundo crispado ao nível político e numa realidade em que a própria Igreja está em grande tensão, o grande ativo e o grande valor destes espaços é o facto de eles gerarem encontro.
Quando se entra neste santuário, ou noutro santuário mariano, vê-se que é um lugar de encontro, onde as pessoas se saúdam espontaneamente. 
Há, aqui, esse desejo profundo de nos encontrarmos com o outro, de recuperarmos essa relação fraterna que não deixa de ser uma relação humana. Esta manhã, poderia ter estado aqui um muçulmano, um judeu — para mim não importa — e creio que ninguém teria olhado com estranheza, nem ninguém se teria perguntado nada, porque são lugares de encontro.

 

Se pudesse propor uma única mudança imediata para a Igreja, qual seria?

A reforma dos seminários, a fundo. Falo da reforma académica, porque temos de começar a mudar para uma Teologia em chave sinodal, pelo que há que mudar também, de alguma maneira, o conhecimento académico da Teologia que se ensina, por um lado, e entrar a fundo na reforma do que é a formação dos seminaristas. […] É realmente essa que irá abrindo e assentando as reformas da Igreja sinodal.

 

Como é que a Cristina perspetiva a Igreja daqui a 50 anos?

Posso sonhá-la…

 

Reformulo. Como é que sonha a Igreja daqui a 50 anos?

Uma Igreja que seja puro Evangelho. Conformar-me-ia com isso. Com uma Igreja cujo centro seja Cristo, que é o que está a tentar Francisco, tirando-lhe essa autorreferencialidade eclesial e pondo no centro Cristo e a sua Palavra, que foi o que Ela sempre teve de ser. E, uma vez estando Cristo no centro, o resto viria por si só.  Aprender a diversidade que vemos nas Cartas de Paulo, que aporta soluções para problemas concretos de comunidades que não têm nada em comum entre si, nem culturalmente, nem na língua, mas para as quais propõe as soluções, sem unificar, sem impor a todas as comunidades o mesmo. Talvez essa diversidade vivida em Cristo, para mim, seja a Igreja que eu sonho para daqui a 50 anos.

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