12 de agosto, 2025
![]() A história de Fátima contada pelas ofertas dos peregrinosOs espaços museológicos do Santuário revelam a “relação umbilical” dos peregrinos com Nossa Senhora, permitindo-lhes uma outra experiência do sagrado.
Todos os anos, o Museu do Santuário de Fátima recebe centenas de objetos pessoais dos peregrinos. Independentemente da sua valia material, todos são recebidos e analisados com a mesma dignidade. É o centro de tratamento de ofertas do Museu que os recebe e, posteriormente, inventaria e documenta para que a informação perdure no tempo. São estes objetos pessoais, oferecidos pelos peregrinos, que dão corpo à exposição permanente do Museu do Santuário de Fátima, situada no edifício da Reitoria. Conhecida como o tesouro de Nossa Senhora, a exposição evidencia a relação umbilical que os fiéis mantêm com a Virgem de Fátima e com os Pastorinhos. A exposição, de uma enorme riqueza e diversidade, mostra apenas uma parte do espólio do Museu, onde se encontram objetos tão variados como um par de óculos, oferecido por alguém que atribuiu a Nossa Senhora a graça de ver melhor, uma bengala que já não é necessária, uma chupeta, umas botinhas ou uma primeira fralda de um bebé. Neste espólio cabe toda a utensilagem humana que permite materializar em objetos o agradecimento dos peregrinos. É a capacidade de dignificar “a relação entre a entidade cultuada e aquele que lhe presta culto”, bem como as histórias de vida por detrás de cada oferta, que tornam este museu especialíssimo, nas palavras do seu diretor, Marco Daniel Duarte.
A mais inusitada das peças Embora todas as peças tenham a mesma dignidade — a mais comum das rendas vale tanto como a de bilros ou como uma tapeçaria de Arraiolos —, não podem, todavia, ser submetidas ao mesmo tratamento. A materialidade da peça determina diferentes ações por parte da equipa de conservadores. “Uma peça de metal precioso perdurará mais tempo do que uma peça de plástico, porque os plásticos deterioram-se com muita facilidade”, exemplifica o diretor do Museu. A forma de acondicionar os artigos está, então, relacionada com a sua materialidade. Há ofertas que constituem verdadeiros desafios para os conservadores. A matéria orgânica é disso exemplo: fios de cabelo, tranças ou até um cordão umbilical que constitui a peça de conservação mais complexa até hoje oferecida ao Museu. Os bens perecíveis são igualmente de tratamento complexo. Um tabuleiro de pão ou uma rosa natural — dois exemplos de ofertas recebidas — são de preservação muito difícil. Mesmo as ofertas cuja conservação não é possível e que, por essa razão, são abatidas não o são “sem terem todo um registo que as vai fazer perdurar, uma vez que a relação da pessoa que oferece aquela peça fica completamente documentada na nossa Instituição”, explica. A par das ofertas dos peregrinos, ao longo do tempo, o Museu foi constituindo um outro espólio que interessou guardar. Marco Daniel Duarte dá como exemplo os documentos associados à construção do Santuário, nomeadamente as maquetas que os arquitetos apresentaram no momento de fazer um novo edifício. “Tudo isso é prova documental da organização do Santuário; e o lugar para preservar esses objetos é, obviamente, o Museu”, acrescenta.
A metáfora do museu O conteúdo da exposição permanente faz jus ao nome, pelo que não se verifica a entrada e saída de peças. A única exceção foi a introdução das ofertas dos Papas ao Santuário, nomeadamente as rosas de ouro oferecidas por Bento XVI e por Francisco. A oferta papal mais singular encontra-se incorporada numa peça que já integrava o acervo do Museu e que se encontrava exposta. A bala que atingiu João Paulo II, no atentado de que foi vítima, na Praça de São Pedro, em 1981, foi introduzida na coroa de Nossa Senhora. Sendo difícil a um diretor de museu apontar um objeto de eleição, neste caso, Marco Daniel Duarte não hesita em dizer que é a coroa, “pela transversalidade da sua história, não apenas relacionada com Fátima, mas com a Igreja ao nível universal”. “Para além de ser uma coroa preciosa, passou a ser um relicário, porque contém uma bala que atingiu uma figura da Igreja que já está canonizada; tem toda esta simbologia”, frisa Marco Daniel Duarte. Ao mesmo tempo, a coroa é também lida como a peça síntese do Museu. Concebida com pedras preciosas que as mulheres portuguesas doaram à Virgem de Fátima, entre as quais se incluem diamantes, safiras, rubis, pérolas e turquesas, a coroa comporta, depois, uma bala que não tem valia material, mas que tem enorme valia simbólica. “Naquela coroa, vemos a metáfora do que é a exposição permanente do Museu do Santuário, nenhuma daquelas peças vale mais do que a outra”.
Vista interior da Casa da Irmã Lúcia, um dos espaços museológicos do Santuário.
Viagem surpreendente Com caraterísticas e conteúdos expositivos diferentes, os quatros espaços museológicos do Santuário oferecem uma única viagem a quem os procura. “É a viagem que Fátima propõe e, na minha opinião, Fátima apresenta uma reflexão sobre o que é a peregrinação humana”, afirma Marco Daniel Duarte. O Museu cumpre a sua função ao constituir-se também como metáfora dessa caminhada terrena e fá-lo a partir dos vários braços que o compõem: a exposição permanente e a relação inefável dos peregrinos com Nossa Senhora, materializada através de objetos, as casas de Francisco e Jacinta Marto e de Lúcia de Jesus, que revelam a biografia concreta de protagonistas e agentes nessa peregrinação humana, e a exposição temporária, através de temáticas cirurgicamente escolhidas, que acompanham as intenções do Santuário em cada momento da sua história desta última década. Para Marco Daniel Duarte, o Museu coloca o Santuário em diálogo não só com os peregrinos, mas também com aqueles que vêm em busca de conhecimento ou atraídos pela linguagem da beleza que Fátima também cultiva. Acredita que “essa é uma viagem de que muitas vezes não se está à espera”. Para o peregrino ou visitante é expectável encontrar o tesouro de Nossa Senhora ou ex-votos. Mas deparar-se com “um discurso feito não apenas de palavras mas também de objetos, de documentos, e encontrar uma narrativa que o leva a pensar é algo que não espera e para o qual, muitas vezes, não está preparado”. Esta é a base do conceito de “museologia da contemplação” em que tem trabalhado e que “abre espaço para que o tempo pare e para que o visitante se confronte com as temáticas que são fundamentais não apenas para Fátima, não apenas para a Igreja Católica e para o Cristianismo mas também para todos aqueles que se entendem como membros desta humanidade”. A museografia completa esse trabalho e “leva a que os peregrinos se sintam a ouvir a mais bela das homilias ou o mais belo dos poemas sobre Fátima, sem o sentirem de forma impositiva”, refere.
Casa dos Santos Francisco e Jacinta Marto.
A experiência do sagrado Mesmo sabendo que o testemunho material, ou seja, o que fica, é sempre menos do que aquilo que se vivencia no Santuário, Marco Daniel Duarte defende que esse corpo teórico contribui para a tomada de consciência da importância do lugar. Nesse sentido, o Museu entronca no grande objetivo do Santuário que é a difusão e o conhecimento do fenómeno de Fátima. Ao mesmo tempo, o Museu do Santuário vai ao encontro do que a museologia defende atualmente: um museu feito pelas comunidades. E se, por um lado, é do senso comum que os santuários são lugares onde os peregrinos entregam objetos, por outro, não tem sido tão linear a ideia de que essas coleções de peças são também elas lugares de comunicação, de ciência, de conhecimento e de difusão. D. José Alves Correia da Silva viu essa enorme oportunidade na década de 50 do século passado. Porém, nem todos os santuários perceberam que esta “é uma das formas mais privilegiadas de comunicação” e que “estão a perder uma grande ferramenta para fazerem perdurar a memória e para comunicarem a própria identidade”.
D. José Alves Correia da Silva, fundador do Museu do Santuário de Fátima.
Outro aspeto que contribui para a relutância no investimento em museus é a ideia de que podem afastar as pessoas da devoção e que se assiste a uma dessacralização do objeto religioso quando ele deixa de estar numa igreja e passa a estar num museu. Marco Daniel Duarte não podia opor-se mais a essa ideia. A esse propósito, relata um episódio que o marcou aquando da exposição temporária sobre a Imagem de Nossa Senhora de Fátima da Capelinha das Aparições. “Era uma exposição de uma escultura que não podia estar na exposição, obviamente”. Contudo, a peça ausente estava presente em todos os núcleos através de diferentes elementos da Imagem que eram explorados. No dia em que se completavam 100 anos da chegada da escultura à Cova da Iria, determinou-se que ela estaria de manhã na celebração e à tarde na exposição temporária. “Naquela tarde, só naquela tarde, a exposição ficaria completa”, esclarece. Recorda que se formaram filas imensas, pois o visitante podia estar mais perto da escultura de Nossa Senhora do que quando vem à Capelinha das Aparições. “O Museu aqui serviu de ponte ainda mais estreita do que a própria estratégia da Liturgia ou do espaço litúrgico”, sublinha. Na fila enorme encontrava-se uma peregrina com um cão. Era cega. “Quis estar diante daquela imagem que não via, mas que via de outra maneira. O Museu foi facilitador do encontro entre os peregrinos e o objeto que consideravam sagrado. E isto talvez possa resumir o que é um museu”. Por fim, Marco Daniel Duarte sublinha que a forma de levar o peregrino “à experiência do sagrado não é apenas aquela que se faz dentro das igrejas, que é fundamental, obviamente, mas é também aquela que se pode fazer dentro do museu”. Em Fátima, essa convicção teve o seu primeiro defensor há 70 anos. Sem o “grande arquivo da memória” que D. José Alves Correia da Silva, a par da Biblioteca e do Arquivo, fundou em 1955, o fenómeno das aparições e o próprio Santuário não teriam a projeção que hoje detêm à escala mundial. |