28 de junho, 2025
![]() “Talvez estejamos num momento da história em que precisamos de retornar a Fátima”Para o cardeal D. Jaime Spengler a conversão que Nossa Senhora apresentou em Fátima é chave que abre todos os elementos que compõem a vida de fé cristã e católica.
Nos dias em que esteve na Cova da Iria para presidir à Peregrinação de 12 e 13 de maio último, o cardeal D. Jaime Spengler deu uma entrevista à Voz da Fátima, na qual defendeu a urgência da construção de pontes, num mundo em conflito, apontando a mensagem de Fátima como caminho para uma conversão que aponta para Jesus Cristo. O cardeal brasileiro falou do ambiente vivido no Conclave que elegeu o novo Sucessor de Pedro, traçou o perfil do Papa Leão XIV e recordou o legado de Francisco. Na qualidade de presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, assumiu os desafios que a Igreja enfrenta, naquele país, e lançou um olhar sobre o futuro, sublinhando a difícil tarefa de conseguir fazer chegar a mensagem do Evangelho aos jovens, que hoje têm uma nova estrutura lógica mental.
Veio de Roma, onde participou no Conclave que elegeu o novo Papa Leão XIV. Pode falar-nos um pouco acerca do ambiente daqueles dias, entre os cardeais eleitores? Este Conclave foi marcado essencialmente por duas características. Primeiro, a fraternidade. Poder encontrar cardeais provenientes de países diversos, homens provenientes de culturas diversas, de tradições eclesiais também distintas e num clima de muita fraternidade, compartilhando a vida da Igreja local onde atuam e, ao mesmo tempo, traçando perspetivas para a Igreja na sua universalidade. Depois, ressaltaria o ambiente de oração e fé que vivemos, seja nos dias que antecederam o Conclave, seja no seu decorrer. Mesmo durante o Conclave, algo que me marcou profundamente nas sessões de votação foi o silêncio e o respeito de todo o grupo relativamente a cada um que se aproximava do crucifixo, com o seu voto em mão. Um respeito e uma dignidade extraordinárias. Vivemos uma ambiência de oração, de meditação e de fé, extraordinárias.
Foi eleito um cardeal americano, missionário. Quais são as suas expetativas para este pontificado? A genética deste Papa é variada. Os progenitores são de ascendência italiana, francesa e espanhola e ele nasceu na América do Norte. Depois, atuou como padre na América Latina e, como superior geral da ordem agostiniana, teve a oportunidade de percorrer o mundo inteiro e de conhecer diversos contextos. Isso concedeu-lhe uma riqueza extraordinária. Agora eleito para suceder Pedro, escolheu um nome muito próprio que chama a atenção: Leão XIV. Mas também poderíamos recordar Leão Magno, o primeiro pontífice que escolheu esse nome e que foi um dos grandes sistematizadores da Cristologia. Então, de um lado, temos o princípio da fé, do outro, a dimensão social da fé. Creio que o nosso Papa Leão XIV intuiu a necessidade de trazer juntos esses dois aspetos de uma vida cristã, de um batizado, no tempo em que nós estamos a viver.
Herda o legado do Papa Francisco. Que legado é este? Podemos sintetizá-lo nos documentos que publicou ao longo do seu pontificado, nos quais sempre esteve presente a marca da alegria, da exultação e do louvor. Então, o legado do Papa Francisco é um horizonte todo próprio da fé que o Papa, ao longo do seu pontificado, tentou, por assim dizer, explanar. É verdade que alguns setores da comunidade de fé não entenderam isto, mas a Igreja será eternamente grata pelo pontificado de Francisco.
É a primeira vez que vem a Fátima? É a segunda. Estive aqui em junho de 2014, com um grupo da Arquidiocese de Porto Alegre, quando fui nomeado arcebispo. Fomos a Roma, para receber o pálio do arcebispo e passámos aqui em Fátima, porque houve um problema com a ligação aérea.
Que memórias guarda dessa primeira presença? Cheguei incógnito e, quando estava na praça, de repente chamam-me através do sistema de som para iniciar a celebração na língua latina. Foi muito bonito, muito bonito!
Regressa, agora, para presidir a uma grande peregrinação. Que intenções traz? Em primeiro lugar, a intenção do Papa eleito. Depois, no ano passado, nós sofremos uma tragédia climática muito forte na nossa região e que foi notícia internacional. Na Arquidiocese, temos várias paróquias dedicadas a Nossa Senhora de Fátima e, quando se soube que tinha sido convidado para estar aqui nesses dias, muitos párocos e pessoas das comunidades pediram que rezasse por eles.
Na sua arquidiocese há uma expressiva devoção a Nossa Senhora de Fátima, com várias paróquias que têm Nossa Senhora de Fátima como padroeira e um santuário dedicado a Nossa Senhora de Fátima, inaugurado em 2017 pelo senhor cardeal. Fale-nos um pouco desta devoção. É difícil sintetizar agora. Eu tenho repetido uma expressão que o Papa Francisco usou, quando retornava de uma viagem internacional no avião. Alguém fez uma questão relativa a Nossa Senhora e ele respondeu dizendo que “onde ela encontra tempo e lugar o diabo não chega”. Creio que essa pode ser uma indicação. Uma outra orientação, que sempre me sustentou, é uma antiga antífona dedicada a Nossa Senhora que diz assim: “Jamais se ouviu dizer que alguém que a Ela tenha recorrido tenha ficado sem o auxílio necessário”. Por fim, temos a Nossa Senhora de Fátima, em Portugal, temos a Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil, mas existem tantas outras denominações, mundo fora. Pergunto-me sobre a razão de tantos títulos. Na história da humanidade, não conheço uma pessoa que tenha recebido tantos títulos. Porquê? Não sei, mas creio que no rosto desta mulher se encontram traços de todo o rosto humano e que, por isso, nenhum título esgota aquilo que Ela significa não só para os cristãos, mas para a humanidade.
Um dos momentos em que a humanidade procurou a intercessão de Nossa Senhora foi no ato de consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, feito a nível mundial, a pedido do Papa Francisco, e que foi cumprido também na Diocese de Porto Alegre, por si. Acha que Fátima pode e deve continuar a ser uma ponte de paz, num mundo em conflito? Talvez estejamos num momento da história em que precisamos de retornar a Fátima. Se, até há dez dias, nós tínhamos 59 conflitos armados acontecendo no mundo, hoje temos 60. Índia e Paquistão estão a agredir-se reciprocamente. Certamente que a mensagem de Fátima aponta para um caminho de paz, mas precisamos de muito mais, de integração entre povos, culturas e aproximação. Talvez aquilo que o Papa Francisco, ao longo do pontificado, insistiu de uma forma muito própria, quando usava a expressão da necessidade de “construir pontes”. Vivemos um tempo onde urgentemente precisamos construir pontes, pontes entre sociedades, mas pontes também entre conceções religiosas. Se, até um passado não muito distante, se dizia, inclusive, que a prática religiosa estava fadada a desaparecer, hoje, nós podemos constatar o contrário.
Num artigo publicado napágina da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros, o cardeal D. Jaime Spengler destaca a oração, a penitência e conversão. São estes os aspetos que destaca da mensagem de Fátima? Eu destacaria, de uma forma especial, a conversão. Conversão é uma palavra composta de um prefixo e um termo que para nós é muito caro: versão. Quando usamos essa expressão versão, estamos a procurar sempre mais essa sintonia com o Evangelho de Nosso Senhor. Nesse sentido, entrar na versão do Evangelho implica fazer próprios os sentimentos de Cristo Jesus. É uma proposta para todos os batizados, independente da vocação assumida na vida. Neste caminho, temos também que pedir a graça de não cair na perversão, porque podemos perverter o Evangelho. E temos sempre de contar com uma realidade presente em alguns ambientes da sociedade, onde existe uma aversão ao Evangelho. Deste caminho de conversão dependem todos os outros elementos que compõem a vida de fé cristã e católica.
No mesmo artigo, fala na “sociedade líquida” atual, onde o apelo para a entrega da vida a Deus, tal como foi feita aos Pastorinhos, “não encontra eco”. Que sociedade é esta e como a devemos enfrentar? O conceito de sociedade líquida foi elaborado por Zygmunt Bauman. Trata-se de uma diluição de tudo aquilo que foram os valores que constituíram aquilo que nós compreendemos hoje como cultura ocidental. Há quatro anos, surgiu um outro conceito que eu acho muito interessante, através de um filósofo que nasceu na Coreia e viveu na Alemanha, que falava da “sociedade do cansaço”. Este mesmo autor lança um outro conceito quatro anos depois, o de “Sociedade do Medo”. Então nós passámos, por assim dizer, do líquido para o cansaço e agora para o medo. Neste contexto, certamente a mensagem de Nossa Senhora ressoa de uma forma especial nos ouvidos daqueles homens e mulheres de boa vontade. O que é que Ela continua a nos dizer? “Façam tudo o que o meu Filho vos disser”. Aqui, está o caminho para fazer frente à liquidez, ao cansaço e ao medo.
Está à frente da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros. Quais são os principais desafios que a Igreja, no Brasil, vive? Costumo sintetizar os desafios da igreja no Brasil na necessidade da transmissão da fé às novas gerações, com uma linguagem, metodologia e pedagogia adequadas. Nas congregações gerais que antecederam o Conclave, ouvindo os bispos de outros continentes, todos expressaram esta preocupação. Além disso, recentemente lançámos um documento que fez história: “A paróquia, comunidade de comunidades”, que aborda a forma de promover, dentro de um espaço paroquial, comunidades de fé que se unem para ler a Palavra, meditar a Palavra, rezar a Palavra. Se, no passado, isto já foi muito forte, ao longo das últimas duas, três décadas foi-se perdendo isto, abrindo espaço para aquilo que nós denominamos hoje como movimento neopentecostal. Por outro lado, os últimos indicam que o número de católicos no Brasil estabilizou, está em torno de 50% da população. O número dos evangélicos pentecostais ou o dessas denominações diminuiu um pouco. Mas o número que mais cresce no seio da população brasileira — cerca de 200% — é daqueles que nós denominamos como “desigrejados”, que são pessoas que passam de uma denominação religiosa a outra, procurando respostas aos seus anseios e às suas necessidades interiores, sem as encontrar. Isso também nos questiona, Igreja Católica, sobre a forma como estamos a levar a Mensagem. Precisaríamos de aprofundar o debate para ver se encontramos indicações que possam nos ajudar na vida das nossas igrejas particulares.
Focando nos jovens. O senhor cardeal já expressou a sua preocupação pelo mundo digital no qual estão mergulhados. Como é que a Igreja pode oferecer caminhos de fé a esta faixa etária, neste contexto? Em Porto Alegre, na Pontifícia Universidade Católica, temos um Instituto de Estudos do Cérebro Humano, considerado o maior no contexto latino-americano. Há tempos, o seu diretor dizia que os jovens na faixa etária dos 17, 18 anos possuem uma outra estrutura lógica mental que já não é a nossa, influenciada sobretudo pelas novas tecnologias que estão inseridas na vida da sociedade e que atingem, em primeiríssimo lugar, a juventude. Diante desta situação, como podemos fazer chegar a mensagem da fé com uma linguagem adequada a estes jovens? Um exemplo pode ajudar-nos a compreender as dimensões desse desafio. Na nossa tradição católica, por exemplo, o termo transubstanciação, que usamos para designar Eucaristia, é um termo muito caro, que perpassa, por assim dizer, toda a história da teologia católica. No entanto, o que um grego entendia por substância não era aquilo que um romano entendia por substância, e o que um romano entendia por substância passou também por um processo de transformação. No entanto, nós continuamos a usar o termo, pois não podemos perder a sua riqueza. Agora, como podemos tornar o conceito acessível para um jovem de hoje, tendo presente toda uma complexidade que existe na base de uma conceção como esta? Quando nós precisamos explicar demais, significa que o que usamos para apontar uma realidade não a repercute mais. Neste contexto, certamente que os jovens são um grande desafio, no sentido positivo, porque exigem que pensemos melhor e mais generosamente aquilo que temos para compartilhar.
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